domingo, 18 de março de 2012

Manipulação midiática

O “Grande irmão”: o totalitarismo da “liberdade” capitalista

“Grande irmão” é a expressão usada por George Orwell para definir o
controle exercido pelo regime totalitário em seu romance 1984 (escrito em 1948).
Naquela história, os trabalhadores são manipulados a tal ponto que existe uma
complexa “polícia do pensamento” que a todos vigia por meio de câmaras
filmadoras. Pensar “errado” é um crime passível das mais violentas torturas. O
correto, naquele romance, é “não pensar”. Não por acaso, o personagem principal
do livro tem como função em seu trabalho reescrever a história, apagar vestígios,
mudar a escrita sobre o passado. A história deixa de ser um processo que faça
sentido para seus sujeitos. É apenas um amontoado de fatos facilmente alteráveis
retirando pessoas de fotografias, recortando fora acontecimentos que pouco
tempo depois poderão voltar a fazer sentido para a história oficial, ou não, pouco
importa.
Orwell, em que pese seu comprometimento com o sistema capitalista, foi
um ferrenho crítico desse tipo de totalitarismo e nos deu subsídios para entendê-
lo. A ironia, porém, é que o mundo supostamente “da liberdade” (o capitalismo) é
aquele que tem sistematicamente aplicado idênticas práticas totalitárias. A mesma expressão “Big Brother” (grande irmão) é usada para um programa televisivo que
aparentemente tem a inocente função de nos entreter. Pessoas voluntariamente
presas em uma casa onde são observadas 24 horas por dia por câmaras
filmadoras. Tudo isso é feito objetivando um prêmio, uma quantia irrisória de
dinheiro comparado aos lucros que a empresa que produz o programa obtém com
ele. Diríamos ainda que não é só isso, trata-se da fama, das possibilidades de
“trabalhos” como posar nus em revistas. A própria intimidade do corpo é outro bom
campo a ser “espiado”. Aqueles confinados ficam felizes em transformar
meteoricamente seus corpos em mercadorias na banca de revistas.
Lá onde estão confinados existe um mundo de faz de conta: não falta nada,
há constantes recompensas por “bom comportamento”, os “errados” são punidos
com pequenas prendas, há constantes festas de “fantasia” que tornam ainda mais
curioso esse mundo “real”. Uma das punições é o trabalho: ter que cozinhar, ter
que limpar o banheiro, lavar o chão. É intrigante que com tão pouco trabalho
aquele ambiente seja sempre tão limpo, tão passível de aprovação pelo “padrão
de qualidade global”. Isso é mais um indício de que há uma produção do programa
que não aparece e que mantém aquela aparência de vigia 24 horas. Ora, seria
impossível tantas câmaras serem mostradas ao mesmo tempo, portanto a edição
é uma exigência lógica do programa. Mas mesmo assim, ele é vendido por
permitir “ver tudo”.
O Big Brother Brasil não é original. É uma cópia e se parece muito com
muitos outros programas que têm sido divulgados nos últimos anos, seja pela
televisão, seja pela Internet. Fundamentalmente temos um grupo aprisionado
sendo vigiado. Mas: o que faz com que as pessoas parem para ver o que está
“acontecendo” lá dentro? O sonho de poder estar no mesmo lugar? A falta de
interesse pela “vida real” tão cheia de problemas que desaparecem como num
passe de mágica no programa que diz ser “vida real”?
Uma pista para isso está na necessidade do programa tirar completamente
qualquer realidade histórica do alcance de quem participa. Não há tempo, não há
espaço. Aqueles fatos poderiam ocorrer em qualquer tempo, em qualquer lugar,
sem qualquer mudança. O mundo poderia estar caindo à volta daquela casa e nada os abalaria. É o sonho da existência de um lugar em que não é necessário
trabalhar, come-se bem, se tiver sorte pode namorar alguém, e ainda viver muitas
fantasias...
A beleza não precisa nem ser comentada: ela está ali. Todos são belos,
perfeitos modelos e sobretudo: magros. Exceção, apenas aos escolhidos por
sorteio. A beleza é um fim em si, algo que chega a desfigurar as pessoas. Os
corpos são erotizados o tempo todo e de tão expostos parecem parte da
decoração.
A própria definição do programa diz muito: trata-se de um jogo, portanto,
sorte e azar são os únicos determinantes. Passar os outros pra trás, enganar,
fingir para se dar bem, tudo isso é esperado dos participantes. E a quem assiste
sobra ainda poder sentir-se participante, escolhendo quem está jogando melhor o
“jogo da vida real”.
Enquanto isso, de quanta dura e triste realidade nos esquecemos. Mas de
tanta profusão de imagens montadas já não se sabe ao certo se aquelas pessoas
sangrando das ruas de Bagdá ou de favelas do Rio de Janeiro invadidas pelo
exército são reais ou apenas personagens de ficção bem projetados por um diretor
e figurinista espertos.
Compreender e romper com o totalitarismo desse sistema fica como desafio
ao pensamento crítico. De nossa “liberdade” escolhemos nos entreter com
pessoas “presas”. Assim, perdemos o limite do espaço, e parece mesmo que
fazemos parte desse grande sistema de vigia, que leva a nada, nos deixa
apassivados admirando esse mundo em que não se sabe ao certo o que é real e o
que é fantasia.
(Carla Luciana Silva. Doutora em História. Professora do Colegiado do Curso de História e do Programa de Mestrado em História da UNIOESTE, Campus de Marechal Candido Rondon.)
Disponível em: http://www.uel.br/grupo-pesquisa/gepal/segundosimposio/carlalucianasilva.pdf